quarta-feira, 28 de novembro de 2012

3- Provável perseguição


 As aulas daquele dia foram estressantes e muito, muito chatas. Dois períodos de química logo pela manha, seguidos de um período de matemática e outro de física fizeram-me ter repulsa por números durante o resto do dia.
 A única pessoa capaz de acalmar meu cérebro seria Tyler, cuja presença não foi extinta naquele dia.
 Enquanto saia pelos portões da escola, meio distraída, e ia em direção ao estacionamento da escola, esbarei em alguém e o fichário que carregava nas mãos caiu, abrindo-se e espalhando folhas para todos os lados. Abaixei-me rapidamente para ajuntar as folhas, e a pessoa a minha frente fez o mesmo.
 — Desculpa — falei, sem prestar atenção a quem.
 — Não. Eu que deveria me desculpa.
 Assim que terminou a frase, levantei os olhos para ele e vi quem era.
 Era o mesmo garoto que vira entrar no bar no dia anterior. Levantei-me e coloquei as folhas dentro do fichário, quando percebi que ele tinha uma das mãos — que estava cheia de folhas — estendida para mim. Peguei as folhas da mão dele e estava pronta para continuar a andar quando ele estendeu novamente a mão para mim, sugerindo que eu a apertasse.
 — Acho que não nos conhecemos, sou Mike.
 Apertei sua mão e falei:
 — Eu sou Anna.
 Ele pousou o olhar sobre mim por tempo demais, e comecei a sentir minhas bochechas corarem.
 — Então Anna. Em que turma você estuda?
 Achei estranha sua pergunta, já que nos conhecemos a menos de cinco minutos. Mas respondi:
 — No 1° ano. E você? Pretende estudar aqui também?
 — Sim, vim me matricular.
 Mais alguns segundos de silêncio, e resolvi falar:
 — Então tá! Não quero parecer grosseira, mas eu tenho que estar em outro lugar em 15 minutos. Então se não se importa…
 — Não! Claro, pode ir. Não quero atrasa-la.
 Lhe enviei um sorriso simpático e sai andando. Alguns passo adiante ouvi novamente sua voz:
 — Anna! — ele gritou para que eu ouvisse, me virei e o vi na metade da escada que compunha a entrada do colégio. — Nos vamos amanhã?
 — Claro que sim! — respondi em um tom de cordialidade.
 Continuei andando até chegar ao carro. Abri a porta, sentei, coloquei a mochila no banco do carona e procurei o celular. Quando o encontrei, vi três mensagens de Tyler. Fiquei aliviada por não serem noticias ruins, pois tentara ligar para ele o dia inteiro para saber o motivo de sua falta ao colégio. A primeira mensagem dizia:
 Desculpe, não posso atendê-la. Mas quero que você venha a minha casa o mais depressa o possível quando sair da escola. Preciso de você.
 A segunda, que foi mandada no minuto em que o sinal de saída soou, dizia:
 Você tem exatamente 20 minutos para estar aqui.
 E a terceira, que foi mandada vinte e dois minutos depois do sinal, dizia:
 Você vem ou não vem? Estou esperando uma resposta.
 Tentei pensar em um jeito de dizer a Tyler que não podia, porque iria jantar com meu pai. Mas ele não iria desistir até me ter a sua frente. Resolvi ligar para meu pai e desmarcar nosso jantar, já que jantava com ele todas as noites no mesmo restaurante desde que mamãe foi embora e a cozinha ficou inutilizada.
 Meu pai e eu não sabíamos cozinhar, e não tínhamos vontade nenhuma de aprender, mas isso foi bom, pois conhecemos todos os restaurantes e lanchonetes da cidade.
 Eu estava dirigindo até a casa de Tyler, quando algo tomou conta de meus pensamentos. O rosto de Mike. Eu o conhecia de algum lugar, mas não sabia de onde. Não era como se tivesse o visto em algum lugar além do bar na noite passada, era como... Como se o conhecesse há mais tempo. Ele parecia estar a tanto tempo em minha vida quanto Tyler.
 Balancei a cabeça para tentar me concentrar na rua e seguir para a casa de Tyler.
 Menos de 10 minutos depois de ter saído do estacionamento da escola, estava parada com o carro na frente da casa de Tyler.
 Desliguei o motor e desci do carro. Dei dois passos na calçada e o vi abrindo a porta da frente.
 Tyler parecia um cachorrinho que recebe seu dono com as orelhas em pé e o rabo balançando, feliz da vida.
 Continuei andando em sua direção e quando estava na escada que dava para a varanda, ouvi Tyler falar com a voz rouca e ruidosa:
 — Até que enfim você veio. Fiquei esperando a tarde toda.
 — Eu, ao contrário de você, estava estudando.
 Quando me aproximei mais dele percebi como parecia doente. Estava usando pijama sob um roupão pesado e grosso, o nariz estava vermelho e seus olhos lacrimejavam. Ele estava gripado.
 Eu me aproximei mais um pouco para abraça-lo, mas ele se distanciou e disse:
 — Não chegue perto. Não quero que você contraia a minha doença, ela pode ser terminal.
 — Pare com isso Tyler. É só uma gripe. Gripe essa que está te deixando paranoico.
 — Está bem então, se você prefere ficar doente... — disse ele enquanto me abraçava.
 Seu abraço sempre fora apertado e inspirava segurança, mas hoje era seco e distante, como se quisesse me proteger dele mesmo.
 — Eu trouxe a matéria para você copiar, não tem muita coisa, mas trouxe mesmo assim. — disse enquanto entregava o fichário para ele. Quando olhei para o fichário que ele acabara de tirar de minhas mãos, me lembrei do incidente de mais cedo e falei:
 — Espere, tenho que organizar as páginas.
 Sentei-me no sofá e o abri. Vi que poucas folhas ainda continuavam no lugar e outras estavam amassadas no canto.
 — Quem foi que o atropelou? — perguntou Tyler, sentando-se ao meu lado.
 — Eu dei um encontrão em um garoto no final da aula. O mesmo garoto que estava no bar na noite passada.
 — Humm, você fez isso de propósito não é? Fez isso só para conhecê-lo.
 — Não, eu simplesmente não olhei para onde estava indo. Mas descobri que o nome dele é Mike e que vai estudar conosco — abri um sorrisinho e continuei falando. — Não que eu esteja feliz por ter um desconhecido estudando em nossa turma, mas ele parece ser simpático. E além do mais ele é bonitinho, não existem muitos garotos bonitos na nossa escola. E nenhum deles estuda conosco.
 — Obrigado por acabar de dizer que eu sou feio. Mas isso não vem ao caso, você precisa se apaixonar por alguém. Posso não conhecê-lo, mas se é para fazer você parar de se meter no meu namoro com a Rose, dou o maior apoio.
 — Então você acha que estou me metendo no seu namoro? Desculpe meu querido, mas eu acho que quem atrapalha minha vida com briguinhas por ciúmes é você.
 — Então está bem, não falo mais nada para você sobre a Rose.
 — Ótimo!
 Ficamos algum tempo sem falar, tempo suficiente para que eu acabasse de organizar as folhas do fichário.
 Assim que acabei, fechei o fichário, entreguei-o para Tyler e estava pronta para levantar quando ele me pegou meu braço e disse:
 — Me desculpe se fui grosso, mas Rose anda me estressando muito. Ela parece não se importar comigo e sempre discute quando toco no seu nome, Anna. Não sei mais o que faço, nem me visitar ela veio.
 — Eu acho que o namoro de vocês não anda muito bem. E uma coisa eu sei sobre esse tipo de relacionamento: quando não está mais dando certo, é hora de acabar com tudo. Talvez fosse melhor para vocês dois. Não vejo você feliz há dias, e quando peço o que aconteceu, o motivo é sempre ela. Se você parar para pensar, nem ela deve estar se sentindo feliz com isso.
 — Você até pode ter razão, mas não sei se isso é uma boa ideia. Por que ela pode não gostar disse e por a culpa em você.
 — Ótimo! Assim não terei mais motivos que me obriguem a gostar dela. Mas a decisão é sua. Cabe a você decidir se quer continuar sofrendo, ou começar a se divertir de novo.
 — Gosto mais da segunda opção. — disse ele com um sorriso preguiçoso nos lábios.
 Eu levantei e do sofá, peguei minha bolça e disse a ele:
 — Tenho que ir, prometi ao meu pai que chegaria em casa sedo.
 — Mas já? Pensei que ficaria para pegar de volta as matérias.
 — Passo aqui pela manhã antes de ir para a escola. Esteja acordado! — ordenei indo em direção à porta. — Por favor, tente não magoar a Rose se for falar com ela hoje. Não vai querer uma ex-namorada vingativa atrás de você pro resto da vida, vai?
 — Pode deixar, vou tentar não falar o que está engasgado na minha garganta há tempos.
 — Está bem. Vejo você amanha.
 Eu o abracei. Seu abraço parecia melhor agora, Parecia um abraço de agradecimento.
 Comecei a descer as escadas que davam para a calçada e fui em direção ao carro, Já estava escuro e imaginei que meu pai iria somente me pedir para não fazer mais isso. Demorei um pouco para achar as chaves dentro da bolsa, desviei o olhar para o fim da rua e vi uma moto preta se aproximando vagarosamente. Fiquei assustada e tentei abrir a porta do carro o mais rápido possível, mas as chaves caíram no chão.
 Arisquei dar mais uma olhada antes de pegar as chaves do chão e sair correndo de volta a casa de Tyler. Pulei os degraus de dois em dois e cheguei à porta. Bati com toda a força que tinha na porta, ouvi os passos apressados de Tyler no piso de madeira. Ele abriu a porta e eu me atirei para dentro o mais rápido que pude.
 — Feche a porta! — ordenei ofegante.
 — O que aconteceu?
 — Não fale! — protestei recostando-me na porta — Ouça!
 O som da moto foi ficando cada vez mais alto e quando se aproximou de onde eu imaginava estar meu carro, ela acelerou e sumiu depois da esquina.
 — Acho que estavam me seguindo. — disse a Tyler, tentando controlar minha respiração.
 — Por que fariam isso?
 — Não sei. Não tenho motivos para ser seguida por um cara em uma moto preta. Pelo menos acho que não.
 Tyler se aproximou de mim e me tomou nos braços. Entreguei-me a seu abraço e afundei o rosto em seu peito.
 — Estou com medo, Tyler. —disse, temendo que tivesse começado a chorar.
 Ele ficou em silêncio enquanto afagava meus cabelos.
 — Vou ligar para seu pai, acho melhor você ficar aqui esta noite. Vou colocar o carro na garagem e depois eu ligo para ele. Ok?
 Assenti com a cabeça. Não conseguiria voltar dirigindo para casa, não estando tão nervosa e assustada.
 Ele desfez nosso abraço e me guiou até o sofá, depois foi em direção à cozinha.
 Minutos mais tarde voltou com uma xicara de chá de melissa e a entregou para mim, dizendo:
 — Vou ver se acho algo que sirva em você como um pijama.
 Assenti novamente com a cabeça. Embora Tyler estivesse doente, ainda encontrava forças para cuidar de mim. Sempre que eu precisara dele, ele estava lá. Como se fosse um guarda-costas, um protetor ou um anjo da guarda.
 Algumas imagens passaram por minha cabeça, como a de um anjo com assas muito brancas, envolto em uma aura extremamente reluzente. Depois outro anjo com uma pessoa em seus braços, como se a tivesse salvado de alguma coisa.
 Assim que ouvi os passos de Tyler na escada, meus pensamentos voltaram ao o que havia acontecido minutos antes. Ele caminhou até mim, me entregou uma de suas camisetas e disse:
 — Vista isso para dormir, você pode ficar no meu quarto. Meus pais só voltarão amanhã à noite. Me dê a chave do carro, vou guarda-lo na garagem.
 Ele estava sério quando saiu pela porta, me deixando sozinha novamente.
 Fui levar a xicara na cozinha e comecei a subir as escadas até o quarto dele. Cheguei à frente da porta, ela estava irreconhecível. Se não conhecesse aquela casa há tanto tempo, certamente me perderia por aquele corredor. A porta não era mais cheia de adesivos de “afaste-se” ou de pôsteres de bandas de rock.
 Abri a porta temendo o que teria lá dentro. Quando consegui avistar seu interior, quase não reconheci o quarto. Antigamente era cheio de mais pôsteres de bandas e luzes escuras, roupas eram encontradas por todo o chão. Típico de um adolescente revoltado.
 Mas agora o quarto estava arrumado, iluminado adequadamente e muito, muito diferente. A cama, arrumada, estava virada de frente para a porta e dois criados-mudos, um com um abajur e outro com alguns livros. A esquerda havia uma estante cheia de livros que ia até o teto, uma escrivaninha pequena com um computador e uma pilha de CD’s ao lado e a porta do banheiro. Do lado direito havia somente o armário e alguns quadros onde a parede era visível.
 Andei até o banheiro e tirei a roupa para colocar a camiseta, que parecia uma camisola indo até metade da coxa. Dobrei minhas roupas e as coloquei na cadeira da escrivaninha. Andei até a estante de livros e comecei a inspeciona-la.
 Reconheci vários livros, os que eu já tinha lido, os que eu dera para ele e alguns que eu o ajudara a escolher. Peguei um exemplar original de O Moro dos Ventos Uivantes e deitei na cama sobre os cobertores.
 Um instante depois Tyler abriu lentamente a porta e olhou para mim.
 — Está tudo bem? Você está confortável?— perguntou ele enquanto entrava e fechava a porta.
 — Aham! Esta tudo bem. — disse, me endireitando para recostar-me na cabeceira da cama.
 Ele andou até o armário e o abriu, tirando lá de dentro uma caixinha prateada. Veio até a cama e a entregou a mim.
 — Oque é isso? — perguntei.
 — Abra, é um presente.
 Abri o laço que envolvia a caixinha e a abri. Lá dentro vi um colar. A corrente era de ouro branco e o pingente tinha uma pedra azul brilhante.
 — É lindo! — exclamei.
 Entreguei o colar a Tyler e virei e costas para ele, afastando os cabelos da parte de traz do pescoço.
 — Eu ia dar de presente a você no seu aniversário, mas você precisa de algo que a proteja quando eu não estiver por perto. Dizem que a pedra afasta qualquer tipo de mal — ele falou enquanto fechava o colar.
 — Obrigada!
 Passei os braços em volta dele para dar-lhe um abraço.
 — Já está ficando tarde, é melhor você dormir para ir a aula amanha. Vou descer. Boa noite! — disse ele enquanto se levantava da cama.
 — Fique! Por favor!? — disse, enquanto pegava sua mão impedindo o de sair. — Pelo menos até eu pegar no sono.
 Ele me encarou por alguns segundos e começou a caminhar até o outro lado da cama enquanto eu me abrigava debaixo das cobertas. Ele esperou que eu me ajeitasse e deitou-se ao meu lado sobre as cobertas.
 Eu virei de lado, ficando de costas para ele. Senti que ele afagava meus cabelos, fazia isso com tanto carinho e cuidado que não resisti ao sono que inundou meu corpo por completo e adormeci rapidamente.

Escrito por: Joseane Ramos

terça-feira, 6 de novembro de 2012

2 - Regresso.

  É estranho estar mais uma vez em casa, sentir o calor deste lugar, respirar este ar que há muito se fazia ausente no meu ser, cada tragada um odor diferente. 
 Quando cheguei já se fazia noite, era segunda feira, um horário mais que seguro para eu me apresentar. Muitos esperavam dentro de minha nova/antiga casa. Fora estranho ver todos os meus amigos ali, além de muitos outros que eu não conhecia, mas podia ver por si só que seria muito bem recebido por eles. 
  Todos me lançavam olhares esperançosos, aqueles que só são úteis para aumentar cada vez mais o peso da falha no final de tudo. Agora me olhavam sorrindo todos sabiam o que eu era, alguns também o eram, e depois de tudo me lançariam seus melhores olhares decepcionados. Caminhei impassível no meio deles. Estavam todos ali. Albert, Jared, Elliot, Rodger, Kate, Harry, Louis, Lana e Juliet. 
  Mas de todos apenas uma me olhava com olhar sincero, era esta Lana. A pequena garota de 12 anos, cabelos negros e os olhos topázio. Seus olhos mesmo inocentes carregavam consigo a culpa, a culpa da morte, a culpa da ajuda. Ela se perdera por mim. mas isso é outra historia, nada que vá intervir nesse momento.
  Prosseguindo: Isso de regresso, é a mim tão melancólico, algo nada insólito. Tudo isso de ter que voltar a respirar o ar salgado desta região faz magoar-me mais, cada vez mais. Cada lufada de ar me faz memorar tantas tragédias, tantas vidas perdidas. Eu nunca quis esse destino para mim, mas acontece que destino não é algo que a gente possa escolher, é tudo prescrito, cada detalhe para nos levar a certo rumo, e o meu rumo em nada se fazia belo.
  - Tudo bem com você? ­- Este era meu pai, Albert, com seu jeito nada sensível tentando cumprir mais uma vez o seu papel de pai presente.
  - Sim! - respondi com os olhos preso ao livro de paginas encardidas por sobre minha escrivaninha. O lápis fazia círculos próximos a minha orelha num sinal de impaciência e bloqueio criativo. - Por que não estaria? - Larguei enfim o lápis e virei-me para encontrar os olhos profundos dele.
  - Kate e eu estamos felizes que tenha voltado - ele usou seu tom mais solene, mais sereno e compassivo. Sabia que falar de Kate comigo era algo difícil  além de trazer à tona brigas e intrigas que ajudariam mais uma vez a me levar embora, para longe dali.
  - Não me importo- respondi friamente. A resposta pareceu não assustá-lo nem intimidá-lo.
  - Mesmo assim - ele prosseguiu. - É bom tê-lo de volta.
  Eu me virei de frente para a escrivaninha e fechei o velho livro abotoando sua capa de couro e guardando-o dentro de uma mochila. Assim que joguei a mochila por sobre a cama arrumada fui até a porta do guarda roupas e detrás dela tirei minha velha jaqueta de couro. Era incrível como tudo havia permanecido no lugar, minhas roupas, meus livros, meus discos de vinil.
  - Aonde você vai? - Meu pai perguntou.
  - Preciso dar uma volta. - respondi ignorando-o e saindo do quarto. Pude ouvir os passos dele seguindo-me até a escada, onde ele me parou segurando meu braço antes que eu começasse a descer. Dali de cima pude ouvir os risos da suposta família feliz.
  - Por favor - ele sussurrou de forma rude puxando-me com força. Eu senti o toque dele gelado, mas não me deixei intimidar, olhei no fundo dos olhos dele de forma que provocava cada vez mais a ira dele. - Só por hoje à noite.
  - Me solta - disse mais alto que ele.
 Quando ele me soltou com medo de eu ter chamado atenção com meu repentino pedido, não hesitei duas vezes antes de começar a descer as escadas.
  Quando desci o ultimo degrau e aterrissei na sala, pude ver cada um daqueles rostos novamente, e comecei a rememorar como cada um me acusaria depois. Agora estavam ali impassíveis, como uma família normal, trocando risos, rindo de coisas que não tinham o menor sentido. Seguravam agora cada um uma taça de cristal preenchida até certo ponto com vinho.
  Esbocei um pequeno sorriso sem significado e fiz um leve cumprimento com o dedo indicador e o médio, e sem pronunciar uma única palavra durante os segundos de silêncio que eles fizeram tentando  entender, eu saí pela porta da frente indo em direção à garagem.
  Ali continuara guardada minha velha moto, estava agora orando para que ela ainda funcionasse. A Yamaha V-Max preta estava da forma que a deixei, é certo que alguém a ligava ora ou outra, talvez Harry na esperança de um dia eu voltar.
  Montei nela e me alegrei quando ouvi o motor funcionar.
  Dali em diante seria apenas eu, a moto, e umas cartas de baralhos no bar do Phil's
  Nada muito importante aconteceu durante a minha viagem no trajeto ao bar do Phil's, o que tenho a registrar aqui e agora é mesmo o que aconteceu lá.
  O bar era dividido em três partes separadas por grandes portas de vidro. Eram elas: Pista de dança, Bar, e salão de jogos. O nome Bar do Phil's, era mais por conveniência  algo para ocultar da policia a boate clandestina que a costa toda sabia existir ali, boate esta que apenas os policiais fingiam não saber existir, mas que hora ou outra iam lá, a trabalho, ou a paisana. Eis ai mais algum motivo pelo qual eu odeio essa cidade, mas muito outro vem trazendo-me de volta para cá, contra minha vontade, contra meu desejo.
  Continuando: O bar era o primeiro salão, onde eu peguei um copo de vodca e o misturei com um tanto de Coca-Cola. Nunca gostei de beber.
  O segundo salão era o salão de jogos, uma grande área com mesas de diferentes tipos de jogos dispostas aleatoriamente durante aqueles muitos metros quadrados. As vezes eu ia ali apenas para escrever, por que era ali que eu tinha paz, mesmo irônico por ser um lugar agitado onde a musica alta e o cheiro de tabaco e  bebida é capaz de deixar qualquer um desnorteado. Eu gostava de tudo aquilo, de poder sentir aquilo, era esse meu refugio, meu abrigo.
  Quando entrei naquele salão naquela noite, eu fui surpreendido. Não literalmente, pois o que eu vira ali já era mais que aguardado  por mim.
  Eu vi Anna.
  Fora ela o motivo da mina ultima fuga, o motivo da minha espessa lucidez. E confesso agora que quando a vi jogada por sobre aquela mesa de sinuca passeando pelo salão com o olhar, algo me feriu. E o que mais me feriu em tudo aquilo fora ela ter involuntariamente encontrado meus olhos nesse longo passeio e se prender no vislumbre deles, de começar a me encarar com certa curiosidade.
  Quando a vi dentro de mim tive o desejo de chorar, mas enfim fui tomado pela felicidade de avistar as feições dela e soltei um leve sorriso nada revelador. Ela não o retribuiu como era de se esperar, ignorou minha presença em segundos, talvez por não me conhecer ainda ou por ter se interessado mais no seu amigo que chegara logo em seguida com suas piadas nada engraçadas.
   Naquele olhar minha noite fora mais que desfeita, fora destroçada.
  Após uma breve partida de pôquer eu voltei para casa soturna da mesma forma que sai, chegando e encontrando Albert e  Kate dialogando algo sobre mim. Era isso neles que eu odiava, isso de quererem me mudar, isso de quererem controlar quem eu sou.
  Quando decifrei o olhar de Kate assim que entrei, percebi que seria mais uma noite tediosa, que se estenderia muito além da madrugada, composta por discuções e brigas, isso se eu permitisse.
  Quando ela me fitou, eu apressei o passo em direção ao quarto. Harry pediu que ela esperasse e foi atrás de mim.
  Fechei a porta pouco antes de ele se por diante dela
  - Mike - ele chamou. Não respondi. - Mike!
  - O que é? - gritei impaciente.
  - Precisamos conversar.
  - Eu não quero conversar.
  - Eu e Kate...
  -Não fale dela comigo - gritei irado interrompendo-o.
  - Mike - ele retrucou - está na hora de você amadurecer. Por menos que você queira Kate gora é a sua mãe.
  - Não, ela não é minha mãe. 
  Tirei do bolso o celular e de uma gaveta às pressas, um fone de ouvido. Abafei os gritos dele à porta com a musica e como em muitas vezes, desejei em vão conseguir dormir, o sono não me ocorria e os sonhos pareciam ter medo de mim, tanto que andavam longe da minha mente. Eu chorei pela primeira vez desde o meu regresso, chorei tanto que me surpreendi por ter dado tanto tempo, essa trégua,  essa paz.

Por: Fabricio Medeiros